domingo, 5 de setembro de 2010

Surdina


No ar sossegado um sino canta,
Um sino canta no ar sombrio...
Pálida, Vênus se levanta...
Que frio!

Um sino canta. O campanário
Longe, entre névoas, aparece...
Sino, que cantas solitário,
Que quer dizer a tua prece?

Que frio! embuçam-se as colinas;
Chora, correndo, a água do rio;
E o céu se cobre de neblinas.
Que frio!

Ninguém... A estrada, ampla e silente,
Sem caminhantes, adormece...
Sino, que cantas docemente,
Que quer dizer a tua prece?

Que medo pânico me aperta
O coração triste e vazio!
Que esperas mais, alma deserta?
Que frio!

Já tanto amei! já sofri tanto!
Olhos, por que inda estais molhados?
Por que é que choro, a ouvir-te o canto,
Sino que dobras a finados?

Trevas, caí! que o dia é morto!
Morre também, sonho erradio!
A morte é o último conforto...
Que frio!

Pobres amores, sem destino,
Soltos ao vento, e dizimados!
Inda vos choro... E, como um sino,
Meu coração dobra a finados.

E com que mágoa o sino canta,
No ar sossegado, no ar sombrio!
- Pálida, Vênus se levanta.
Que frio!


Olavo Bilac

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A angústia


A Angústia

Nada em ti me comove, Natureza, nem
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
Nem pastorais do Sul, com o seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poentes, além.

Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções,
Da poesia, dos templos e das espirais
Lançadas para o céu vazio plas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.

Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a que chamam Amor.

Já farta de existir, com medo de morrer,
Como um brigue perdido entre as ondas do mar,
A minha alma persegue um naufrágio maior.


Paul Verlaine

quarta-feira, 30 de junho de 2010

sábado, 26 de junho de 2010

Fim


No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...,
Este pequeno universo provinciano entre os astros,
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total.


Álvaro de Campos

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O que eu sou...

Nocturna e dubia luz
Meu sêr esboça e tudo quanto existe...
Sou, num alto de monte, negra cruz,
Onde bate o luar em noite triste...

Sou o espirito triste que murmura
Neste silencio lúgubre das Cousas...
Eu é que sou o Espectro, a Sombra escura
De falecidas formas mentirosas.

E tu, Sombra infantil do meu Amôr,
És o Sêr vivo, o Sêr Espiritual,
A Presença radiosa...
Eu sou a Dôr,
Sou a tragica Ausencia glacial...

Pois tu vives, em mim, a vida nova,
E eu já não vivo em ti...
Mas quem morreu?
Fôste tu que baixaste á fria cova?
Oh, não! Fui eu! Fui eu!

Horrivel cataclismo e negra sorte!
Tu fôste um mundo ideal que se desfez
E onde sonhei viver apoz a morte!
Vendo teus lindos olhos, quanta vez,
Dizia para mim: eis o logar
Da minha espiritual, futura imagem...
E viverei á luz daquele olhar,
Divino sol de mistica Paisagem.

Era minha ambição primordial
Legar-lhe a minha imagem de saudade;
Mas um vento cruel de temporal,
Vento de eternidade,
Arrebatou meu sonho! E fugitiva
Deste mundo se fez minha alegria;
Mais morta do que viva,
Partiu comtigo, Amôr, á luz do dia
Que doirou de tristêsa o teu caixão...
Partiu comtigo, ao pé de ti murmura;
É maguada voz na solidão,
Dôce alvor de luar na noite escura...
E beija o teu sepulcro pequenino;
Sobre ele vôa e erra,
Porque o teu Sêr amado é já divino
E o teu sepulcro, abrindo-se na terra,
Penetrou-a de luz e santidade...
E para mim a terra é um grande templo
E, dentro dele, a Imagem da Saudade...
E reso de joelhos, e contemplo
Meu triste coração, saudoso altar
Alumiado de sombra, escura luz...
Nele deitado estás como a sonhar,
Meu pequenino e mistico Jesus...
Lagrimas dos meus olhos são as flôres
Que a teus pés eu deponho...
Enfeitam tua Imagem minhas dôres,
E alumia-te, ás noites, o meu sonho.

Todo me dou em sacrificio á tua
Imagem que eu adoro.
Sou branco incenso á triste luz da lua:
Eu sou, em nevoa, as lagrimas que choro...


Teixeira de Pascoaes

terça-feira, 11 de maio de 2010

Só dos mortos devemos ter ciúmes!


Só dos mortos devemos ter ciúmes; acordar
de entre as pedras doentes dolorosos
que da beira das arribas nos atirem ao porto
onde enfim se encontre a nossa angústia.
Só eles lutam palmo a palmo pelo espaço
em que já vertical erguemos nosso braço
em busca de que sumo ou de que céu. É que só eles
nos retiram da cama de que por nós foi feita
a escolha: a macieza intensa que julgámos
eterna, que nos parecia tão cordatamente
entregue à nossa própria suma sumaúma.
Só os mortos, horror, inda que vivos, vivem
paredes meias com os nossos dedos, logo afastam
os momentos ferozes que tocássemos, e as nuvens
por sobre o mar dos olhos: é bem feito,
dizem os meninos. Pois que dos vivos vivos
a vida nos desvia e nisso nos conduz, assaz
encaminhados pelo que vamos querendo.
Só os mortos nos mordem, nos apontam
a dedo frio e tenso, entorpecem desejos
e, pois pior, só eles nos expulsam
do vero som dos sinos numa entrega
às palavras baldadas do comércio.
A luta clara que sonhada fosse
pela mão dada e limpa que nos dessem
tropeça, polvo, com misérias nossas
e enterra-te na pérfida, agoniada leira
onde dominam eles nossas bocas e o sangue
que nelas perpassasse. Só os mortos,
invisíveis, letais, pesados entes,
nos disputam a vida, e só por fim nos matam.
Pedro Tamen

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Sentimento dum Ocidental


I
Avé-Maria

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

Cesário Verde

quinta-feira, 25 de março de 2010

Canção da Partida


Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,
As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
Lançai-o ao mar.

E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro um carta...
--- A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves --- a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar,
Que é para o molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.


Camilo Pessanha


quinta-feira, 18 de março de 2010

terça-feira, 16 de março de 2010

A Hora da partida



A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 11 de março de 2010

Memória



Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 2 de março de 2010


“Quem fala de Amor não ama verdadeiramente: talvez deseje, talvez possua, talvez esteja realizando uma óptima obra literária, mas realmente não ama; só a conquista do vulgar é pelo vulgar apregoado aos quatro ventos; quando se ama, em silêncio se ama: às vezes o sabe a mulher amada, mas creio até que num amor que fosse pleno, em que nada entrasse das preocupações da terra, nem ela o saberia”.
Agostinho da Silva

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O que tu és...


És Aquela que tudo te entristece
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada merece.

Aquela que o sol claro entenebrece
A que nem sabe a estrada que ora trilha,
Que nem um lindo amor de maravilha
Sequer deslumbra, e ilumina e aquece!

Mar-Morto sem marés nem ondas largas,
A rastejar no chão como as mendigas,
Todo feito de lágrimas amargas!

És ano que não teve Primavera...
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!...


Florbela Espanca

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Cada Segundo


Não desejo a indigência,
a serenidade
dos lugares desertados:
desejo que cada segundo
quando amo
explodisse
e fosse a terra em sua expansão
durante a primeira noite,
a gestante, do mundo.



António Osório

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O homem que outrora fui...


O homem que outrora fui, o mesmo ainda serei:
leviano, ardente. Em vão, amigos meus, eu sei,
de mim se espere que eu possa contemplar o belo
sem um tremor secreto, um ansioso anelo.
O amor não me traiu ou torturou bastante ?
Nas citereias redes qual falcão aflante
não me debati já, tantas vezes cativo?
Relapso, porém, a tudo sobrevivo,
e à nova estátua trago a antiga oferenda...



Alexander Pushkin

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Pátria


Revolto-me ao ver-te morrer
A cada dia que passa,
Tormento, lágrimas, desgraça
Num infindável entardecer!

Pátria Desperta!
Não entres nessa morte certa,
Mãe, não te deixes claudicar,
Que há por ti quem ainda queira lutar!

Que a primeira nação seja a derradeira,
Antes do sonho se findar,
Nos nossos peitos a flamejar
Há uma insígnia a honrar!

Não nos deixes na penumbra esquecidos,
Para sempre, inexoravelmente perdidos!
Grita… que te querem amordaçar!
-Às Armas, Às Armas... Que é tempo de lutar!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Santo e Senha




Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.

Miguel Torga (1932)

sábado, 30 de janeiro de 2010

domingo, 24 de janeiro de 2010


Queria arrancar do peito
A chama imensa que me consome,
Transformá-la em doce leito,
Afagar o que não dorme!

Suspiro contigo na mente
Acorrentado aos olhos teus,
Neste cativeiro eu me contente,
E viva triste em sonhos meus!

Porquê enfim me encarcerei?
Não te sei dizer…
Nem sei se algum dia saberei
Como foi que por ti me enlacei!

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010


Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.

Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.

Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.
Edgar Allan Poe

domingo, 3 de janeiro de 2010

O enforcado


No gesto suspensivo de um sobreiro,
o enforcado.
Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.

Dele sobra o cajado.
Alexandre O'Neill