quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O que tu és...


És Aquela que tudo te entristece
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada merece.

Aquela que o sol claro entenebrece
A que nem sabe a estrada que ora trilha,
Que nem um lindo amor de maravilha
Sequer deslumbra, e ilumina e aquece!

Mar-Morto sem marés nem ondas largas,
A rastejar no chão como as mendigas,
Todo feito de lágrimas amargas!

És ano que não teve Primavera...
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!...


Florbela Espanca

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Cada Segundo


Não desejo a indigência,
a serenidade
dos lugares desertados:
desejo que cada segundo
quando amo
explodisse
e fosse a terra em sua expansão
durante a primeira noite,
a gestante, do mundo.



António Osório

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O homem que outrora fui...


O homem que outrora fui, o mesmo ainda serei:
leviano, ardente. Em vão, amigos meus, eu sei,
de mim se espere que eu possa contemplar o belo
sem um tremor secreto, um ansioso anelo.
O amor não me traiu ou torturou bastante ?
Nas citereias redes qual falcão aflante
não me debati já, tantas vezes cativo?
Relapso, porém, a tudo sobrevivo,
e à nova estátua trago a antiga oferenda...



Alexander Pushkin

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Pátria


Revolto-me ao ver-te morrer
A cada dia que passa,
Tormento, lágrimas, desgraça
Num infindável entardecer!

Pátria Desperta!
Não entres nessa morte certa,
Mãe, não te deixes claudicar,
Que há por ti quem ainda queira lutar!

Que a primeira nação seja a derradeira,
Antes do sonho se findar,
Nos nossos peitos a flamejar
Há uma insígnia a honrar!

Não nos deixes na penumbra esquecidos,
Para sempre, inexoravelmente perdidos!
Grita… que te querem amordaçar!
-Às Armas, Às Armas... Que é tempo de lutar!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Santo e Senha




Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.

Miguel Torga (1932)