quinta-feira, 27 de novembro de 2008


A caneta rola-me nos dedos,
E o que me resta é escrever,
Dar a todos conta dos meus medos,
Que o derradeiro está em morrer!

sábado, 22 de novembro de 2008

Traduzir-se


Uma parte de mim é todo mundo
Outra parte é ninguém
Fundo sem fundo
Uma parte de mim é multidão
Outra parte estranheza e solidão
Uma parte de mim, pesa e pondera
Outra parte, delira
Uma parte de mim almoça e janta
Outra parte se espanta
Uma parte de mim é permanente
Outra parte se sabe de repente
Uma parte de mim é só vertigem
Outra parte, linguagem
Traduzir uma parte noutra parte
Que é uma questão de vida ou morte
Será arte?
Será arte?

Ferreira Gullar

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que não vou por aí.
José Régio

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Foras!

Foras tu céu e eu trovão,
Tu flor e eu zangão,
Isolda e eu Tristão,
A morte e eu caixão!

Foras tu mar e eu a rocha,
Tu fogo e eu a tocha,
Tabaco e eu mortalha,
O sismo e eu a falha!

Foras tu frio e eu o gelo,
Tu rio e eu rabelo,
Lã e eu novelo,
O deserto e eu o camelo!

Foras tu barco e eu o porto,
Tu morgue e eu o morto,
Tristeza e eu a dor,
A tela e eu o pintor!

Foras tu…
Eu nada sou!

sexta-feira, 14 de novembro de 2008



Jardins de pedra,
Flores de mármore,
Luvas de chumbo,
Sobretudo de pinho!

Leves vapores,
Cruzes festivas,
Missas cantadas,
E cordas suspensas!

Semblantes carregados,
Gravatas pretas,
Correctores de pecados,
Convulsões violentas…

Ah…de tudo isto eu abdico,
Solidão enquanto me estico,
Erva húmida e um pouco de chuva enquanto me despeço
É tudo…, e apenas tudo o que Vos peço!

terça-feira, 11 de novembro de 2008



Perguntam-me porque escrevo solidão?
Não sei…careço de explicação!
Oiçam… oiçam o ecoar do trovão,
E deixem-me…deixem-me da mão!

Não quero falar! Prefiro gritar,
Ou deixar-me pela escrita silenciar!
Não…não me peçam porquês,
Que a minha sombra ninguém a fez!

Forjaram-na os elementos,
No vagar do turbilhão,
E nasceram-me os tormentos,
Bem do meio da podridão!

Não…não me peçam entendimento…
Nem sequer por um momento...
Deixem-me…sou filho da maldição…
Oiçam…oiçam o ecoar do trovão!



segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Rochedo que o mar desgasta,
Nas cáusticas marés violentas,
Como lança que trespassa,
Entrego-me eu em carícias lentas,
À dor… essa paixão que se arrasta!

O sangue cai-me com a onda,
Definho, rebolo… solto gritos,
E ninguém me ouve…
Mergulho no silêncio…
Silêncio…o fundo do mar,
Deixo-me cair…a flutuar…
Desço…desço…e desço…
No remoinho em que me desvaneço,

Sou lava que mergulha a fervilhar,
No fumo, o resto do meu ar…
Quedo, petrifico….sinto-me evaporar…
Pedaço de rochedo, que me fez tombar!


domingo, 9 de novembro de 2008


Poesia


É ponderar, reflectir, dar corpo ao sentir,
Amar a vida, chorar e sorrir,
Rugir aos deuses, pôr o peito a descoberto,
Vaguear por aí sem poiso certo!

É falar-te baixinho ao coração,
Seguir na estrada em contra-mão,
É dar voz ao animal, calar a razão,
É um sonho puro, mera ilusão.

É nascer em cada verso,
Sentir a alma em submerso,
Duvidar, ansiar sem querer que é amar,
Erguer esta espada…e por ti lutar!